sexta-feira, 13 de março de 2009
O MARTELO QUE QUERIA SER MARTELO
Eu conheci o Martelo.
Não, você não leu errado nem eu digitei errado. Martelo mesmo, com “t”.
O conheci ainda pequeno. Seu grande ídolo era Mjolnir, o martelo mágico de Thor, deus do trovão. Invencível, indestrutível, quantas batalhas, quantas aventuras Mjolnir vivia nos gibis que Martelo devorava nas tardes de outono.
Quando não imitávamos as aventuras do martelo mágico brincávamos quase sempre de oficina. Esse era o seu sonho, um tanto quanto mais pé no chão.
Ao final de sua adolescência tornara-se um autêntico martelo unha 30 onças, com cabeça de aço e cabo de Madeira de Lei envernizada. Ele tinha um quase indisfarçável orgulho disso.
Era então hora de deixar os gibis de lado e ganhar dinheiro, procurar um emprego de... Martelo, oras! O que mais?!
Fez uma lista de marcenarias e oficinas, lustrou-se todo e foi à luta.
Não havia vaga na primeira marcenaria. Na segunda ficaram com seu currículo e disseram que entrariam em contato caso surgisse uma posição. Nas oficinas que visitou até conseguiu ser entrevistado numa e noutra, mas nada de emprego.
Isso se repetiu várias vezes. Muitas vezes.
Começou a ficar desanimado e assustado pois precisava, como todo mundo, ganhar seu próprio sustento. Sem falar na delicada situação de estar sem trabalho, principalmente em reuniões sociais quando lhe perguntavam “o que anda fazendo?”, “onde está trabalhando?”.
Apelou para carpintarias, mas também não teve sucesso.
Estava cansado da rotina de ler os classificados nos jornais, de mandar currículos pelo correio, por e-mail e de se cadastrar em todos os sites de empregos quando surgiu uma oportunidade e o chamaram. Era uma vaga de chave de fenda. Espantado e assustado com o convite, foi aconselhar-se com amigos e parentes.
Concordaram que não era o ideal, mas ele não podia perseguir um ideal para sempre, tinha de se ajustar. Não precisa ser fatalista, falavam. Só por que nascera martelo não significava que não poderia aprender outras atividades. Na pior das hipóteses, ao invés de especialista seria um generalista com experiências variadas, tão procurados à época.
Ponderou. Não queria mais aquela rotina de desempregado e aceitou.
No início seus companheiros de marcenaria davam-lhe um desconto por seus trabalhos meio mal feitos. Afinal, era seu primeiro emprego. Mas depois de um tempo foi ficando claro que aquele serviço não era para ele. Seus colegas lançavam olhares estranhos e não demorou muito a ouvir conversas de corredor sobre como era incompetente. Pediu demissão e voltou à luta por seu lugar no mundo das marcenarias.
Mas os tempos, como sempre aliás, eram difíceis. Havia a concorrência com os martelos chineses, sempre trabalhando por salários irrisórios, e novas tecnologias que substituíam parte dos trabalhos nas oficinas.
Ele tentou, tentou, tentou até que apareceu uma vaga de serrote.
Caracas! Nem eu acreditaria se não tivesse acompanhado sua estória de perto.
Disseram-lhe que com o tempo ele se adaptaria, não precisava fazer um trabalho “fino”. Bastava separar os pedaços de madeira na marretada mesmo. Como da vez anterior, aceitou para sair da bacia das almas.
A novela se repetiu. Tudo bem no início, os amigos eram complacentes, mas logo, como era um trabalho em cadeia, seu desempenho muito aquém do necessário atrapalhava o resultado final. Voltou a se sentir incompetente, opinião da qual seus colegas, agora ex, partilhavam. Isolou-se no canto da marcenaria fazendo seu trabalho quase que se desculpando. O chefe já não lhe passava muito trabalho. Foi, como dizem, posto na geladeira.
O estigma de incompetente instalou-se em sua alma. Já acreditava, e a realidade parecia lhe mostrar isso, que não servia para nada em lugar nenhum. Ficou estressado e o resultado de seu trabalho, que não era bom, ficou pior.
Não tinha mais condições de continuar. Pediu demissão.
Sem emprego novamente e acreditando que não tinha utilidade nesse mundo, caiu em depressão. Acho que já estava deprimido desde lá de trás, mas agora havia caído a última gota no copo d’água, havia sido dado o último sopro na bexiga, havia...
Chega de metáforas. O fato é que, depois de tanto tempo e já com bem mais idade de que quando saiu à procura de emprego pela primeira vez, percebeu que estava meio velho para o mercado de trabalho e não tinha experiência na profissão para a qual nascera.
Teria tudo isso sido uma pegadinha do destino? E agora? Esforçava-se para não adotar o papel de vítima, precisava assumir suas escolhas erradas, mas escolher o quê quando parecia não haver opções?
Como acaba essa estória? Ainda não acabou. Ele está por aí, não o vejo há algum tempo. Soube por acaso que voltara a estudar martelaria, talvez para se atualizar e engordar o currículo. Orgulhoso que era, deve ter vergonha de sua situação.
Uma pena. Ele podia ter sido um bom martelo.
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Um comentário:
Boa história, e bem contada.
Eu passei anos trabalhando em uma imobiliária fazendo trabalho burocrático, enquanto fazia minha faculdade de letras para ser tradutor. Mas foram tantos anos fazendo aquele trabalhinho medíocre que quando me formei deu aquela sensação de que deveria me conformar e ficar para sempre na imobiliária.
Um dia me aborreci e pedi demissão. Estava tão desacreditado em mim mesmo que fui procurar emprego em outra área que nada tinha a ver comigo: computadores. Cismei que ia trabalhar administrando sistemas. Sabe como é, computador, profissão da moda. Besteira.
Depois de bater cabeça por uns tempos fazendo algo que nunca seria tão fácil e natural para mim quanto era para amigos da área, pensei na saída clássica: concurso público. Não sou do tipo que acha que você tem que trabalhar no que gosta, acho que trabalho é para ganhar dinheiro e você deve fazer algo que saiba fazer bem, pois assim faz mais dinheiro.
Logo vi que não ia dar certo também, e que eu me sairia muito mal no serviço. Sou desorganizado e não lido bem com outras pessoas, trabalho melhor sozinho. Passei um ano tentando dar aulas de inglês, todo mundo dizia que era uma boa. Foi um desastre, eu era péssimo professor e os alunos me bombardeavam na avaliação do final do semestre.
Honestamente, isso não fez mal à minha auto-estima. Eu sabia que estava forçando a barra. Nunca levei jeito para dar aula. Fiz porque precisava da grana, mas sabia que não daria certo. Sem surpresas. Não havia motivo para me entristecer com isso. O amigo martelo devia pensar sobre o assunto.
Vi que estava era com medo de investir na tradução. Parei e pensei: meu inglês é bom, eu escrevo razoavelmente bem em português... por que ter tanto medo da tradução?
Investi. O início não foi fácil, e sei que fiz alguns servicinhos ruins pela falta de prática. Mas achei que deveria ser honesto comigo mesmo. A tentação de me colocar como um incompetente que não prestava para nada era grande, mas eu não estaria sendo justo. Eu sei que tem pessoas que já começam suas carreiras demonstrando brilhantismo logo de cara, e a gente cansa de ver essas coisas em filmes. Não tem jeito, a gente internaliza e acha que se não começar arrebentando é melhor desistir.
Tudo besteira. Isso é coisa de cinema. Na vida real, todo "gênio" faz merda de vez em quando, faz trabalhos dos quais se envergonha e questiona a própria competência. Isso é normal. Eu diria que o amigo martelo errou ao aceitar trabalhos para os quais não estava preparado. Só serviu para diminuir a auto-estima e aumentar a sensação de "sou um fracassado". Agora que o mal está feito, é pensar, como eu disse aí em cima, se há mesmo motivo para se sentir fracassado por isso.
Quanto à sua especialidade, martelar: todo martelo acerta o dedo de vez em quando. Aposto que até o Thor já ficou com o polegar inchado algumas vezes. E sabe como é, quanto maior o martelo, pior a dor. Mas é assim mesmo, o lance é continuar martelando. Já pensou se o Mjolnir vai procurar emprego de peso para papel só porque não conseguiu colocar um quadro do Loki na parede?
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